Texto de Ana Elisa Ribeiro, para usar em aula (postado aqui para fins práticos)

 

 

Ponto, parágrafo

Defina “parágrafo”. Minha memória vive me traindo, mas às vezes me vem um lampejo de alguma aula lá do ensino fundamental, em que uma professora – geralmente foram mulheres – tentava nos ensinar, com noções e definições – e escassa prática, o que era um parágrafo. Depois de anos a fio pelejando para entender e, principalmente, para executar um bom parágrafo, eis que finco os pés no ensino superior e começo a ter aulas de texto acadêmico, gêneros científicos, etc. Quando foi a vez de aprender o tal do resumo, aqueles que as revistas e os congressos exigem logo à testa dos artigos, a professora, cientista e publicadora tarimbada, afirma para uma turma incrédula que o resumo é, normalmente, um blocão só de texto, sem abertura de parágrafo. Fui solidária ao sofrimento dos/as colegas. Poxa, tanto investimento… para isso? Fato é que, até hoje, uma das coisas que “corrijo” em artigos que vêm com resumos é a paragrafação – ou a exclusão dela. Nas aulas de texto acadêmico que ministro, em especial para a área de Exatas, preciso insistir na ideia do blocão, ao que os/as estudantes atendem mal. Lá vou eu marcar com setas e palavrinhas curtas o parágrafo que não deveria estar ali. Mas, voltando ao aprendizado do parágrafo, trata-se de uma abstração já antiga, mas que ainda nos pega pelo pé. A língua escrita criou convenções e formatações que nos deixam meio perdidos/as, na hora de aprendê-las – e, eventualmente, desaprendê-las. Ao que sabemos, no entanto, a ideia era facilitar. O que sentimos quando vemos uma massa de texto compacta, sem interrupções e respiros? A ideia de separar palavras e de paragrafar tem a ver com tudo: o significado, a respiração, o intervalo no assunto ou uma leve mudança nele, um giro, um ângulo, o sossego dos olhos e da mente. Mas não é trivial, na hora de aprender. [Você, leitor ou leitora, concorda com a divisão de parágrafos que fiz neste texto sob seus olhos? Como faria? Ou tentou redividir e acabou voltando atrás? Já tentou o exercício de paragrafar blocos de texto compactos?] Recentemente, revisei um belo romance. A autora me autorizou não apenas a “caçar erros”, tal como se entende a tarefa básica do/a revisor/a, mas a dar palpites de maior monta. Uma das coisas em que resolvi interferir foi na paragrafação. Em vários momentos do texto, eu tinha a impressão de que a endentação que costuma marcar o parágrafo, tal como geralmente aprendemos nas escolas do Brasil, interrompia um fluxo que ainda poderia continuar. A questão é: isso gera, no/a leitor/a, uma expectativa. Errada, no caso. Em outras situações, acontece o contrário: um texto contínuo, excessivamente contínuo, precisa de cortes, interrupções, mudanças de fôlego, a serem marcadas então com espaços e endentações. É claro que a pontuação faz um pouco esse papel, isto é, o de ajudar na marcação, no ritmo, na cadência, sem mencionar seu fundamental papel sintático e mesmo semântico. Mas os espaços (brancos) e as endentações são também elementos fundamentais dos textos, embora nem sempre tenhamos aulas sobre eles. Deveríamos. Nos poemas, espaços e endentações, formatações e cortes são parte do que se quer dizer ou não se quer. Poemas costumam ser identificados como tais antes mesmo de serem lidos. A imagem de umpoema é, antes de palavra, forma gráfica, massa textual. Mas são raras as aulas sobre os silêncios representados ou as pausas marcadas a espaços. Geralmente, nossas aulas de texto literário focalizam o preto, a letra, a palavra, o dito. Fundamental, no entanto, entender de não-dito, de entrelinha e de verso, na leitura de poesia. Nem vou me deter na poesia concreta, por exemplo. Vocês podem tirar suas conclusões. No texto em prosa, os espaços também não são desprezíveis. Infelizmente, de novo, damos mais corda à massa impressa (ou digital). E entender a mecânica de uma mudança de parágrafo é da ordem de uma abstração cognitiva, de uma torção que é dificílima de explicar. Tente. Reparem que minha mira aqui está voltada à marcação do parágrafo, mas não escondo minha preocupação com a compreensão de como decidir por abrir um ou não. Quem nunca teve uma aulinha de “tópico frasal”? Falei, uns tantos parágrafos atrás, na maneira como geralmente aprendemos sobre parágrafos, aqui em Pindorama. Acho bom e confesso que preciso dos nossos parágrafos. Mas até eles são variados, a depender da cultura e da tecnologia. Já repararam como a endentação marcadora de parágrafo andou caindo de moda depois dos e-mails e de outros gêneros digitais ou de tela? Uma amiga escritora sempre me escreve e-mails com endentações, o que meus olhos estranham muito ali, mas que não estranham numa folha impressa ou de Word. Meu pai, exímio datilógrafo, tenta endentar até em mensagens de WhatsApp. Não se conforma. E o compreendo. São tipos de marcação de parágrafo:

o tradicional é esse que a gente aprende na escola e usa quase sempre, ao longo da vida. Já vi ser chamado de parágrafo “espanhol”. Trata-se de uma endentação que deixa a primeira linha mais curta, à esquerda, do que as demais. Há, no entanto, outras formas de marcar.

O parágrafo “americano” ou “alemão” é esse que ficou comum, em especial nas telas e em plataformas digitais, isto é, não há endentações em primeiras linhas, mas espaços maiores entre blocos de texto. Isso parece confortável, hoje, em muitas ocasiões. De fato, é um respiro e tanto.

Já o “francês” faz o contrário do “americano”: deixa a primeira linha comprida e todas as de baixo mais curtas, endentadas. Para nós, parece esquisito que só. Mas já vi usarem por aí.

Essas denominações “espanhol”, “francês”, etc. têm relação com as origens dessas formas e soluções que vêm junto com remotas histórias do impresso e mesmo do manuscrito. Não vou recuar tanto. O que me interessa aqui é esse aspecto visual tão desprezado, tão pouco tratado, mas tão importante; e o aspecto semântico e cognitivo que nos faz, na prática, ir “sentindo” onde acaba um parágrafo e começa outro. Atrapalhar isso é, também, para quem sabe, não para quem quer. Ponto, parágrafo.

RELEITURA FELICIDADE CLANDESTINA, de Clarice Lispector

Não é bom para os negócios então não falo nada porque eu não sou tonta. Mas que são esquisitos, são. Não entendo essa gente. Passo o dia sorrindo pra gente que que não entendo. Gente de outro planeta. Mas sorrio porque quero que eles comprem, e se compram podem ter até rabo e chifre que eu não ligo.

 

Começa sempre do mesmo jeito. Entro flanando no ambiente como desinteressada. Como se estivesse no lugar errado mas distraída da busca pela direção certa. Dou várias voltas vagarosas olhando de relance para todos os que me rodeiam.

 

 Claro, nem todos são assim estranhos, mas é a maioria. Tem os que entram já sabe o que querem pegam e levam, práticos, gosto assim. Claro que é melhor os que sabem o que querem e  resolvem pegar mais um ou dois que viram do mostruário, esses são os melhores, compram como se escolhe balas, já sabem se querem de framboesa, hortelã ou morango mas são gulosos por experimentar outros sabores. Sim, são os melhores porque são rápidos e gulosos e assim enchem a minha caixa registradora.

 

Sinto a presença potente de cada um, seus volumes grossos ou não. Não discrimino, aprecio todos. Embora um grosso facilite dormir com ele. Embebida de presenças paro, por minutos quase não me movo, depois volto à dança.

 

Mas os práticos que sabem o que querem, gulosos ou não, são a minoria. O que os meus clientes ou pretensos clientes fazem mesmo é ficar horas no meu estabelecimento, o que me irrita. Eu criei um sistema interno e não dito de controle desse povo, observo quem entra e anoto o horário “Homem alto meio corcunda 10h53”, “Menina bobinha da mochila de rodinha 11h03“, “Velha de cabelo ralo de tanto pintar 11h07” se a pessoa passa mais de 10 minutos sem escolher nada, eu me aproximo e digo sorrindo “Posso ajudar?”. Bem que eu gostaria de fazer isso logo que o cliente entra, mas nesse ramo não posso. Por que não herdei uma loja de roupas? Bom, então eu chego perto depois de dez minutos. Se o cliente me dispensa dizendo que está só olhando ou gosta de olhar, eu sorrio e me afasto, cronometro mais 5 minutos e aí me ofereço de novo. Alguns nessa hora já perguntam sobre algum produto e compra, mas o comum mesmo é  só irem embora. Mas se, de novo, essa pessoa diz não precisar de nada eu e saio e programo mais 3 minutos volto e então sorrio “Tem certeza de que não há nada em que posso te ajudar?” daí a pessoa se toca e sai da loja. Acho ótimo, se é assim é porque não ia comprar nada mesmo. O que essa gente pensa? Isso aqui não é um museu.

 

Entre as voltas desse primeiro prazer. Displicente. Passo ao 1º passo do envolvimento: o toque. Aparentemente acidental, como ao esbarrar com as mãos em alheias coxas na entrada do elevador. Mas aos poucos pouso os dedos por mais tempo, sem olhar para ele. E logo ligo meus olhos a um terceiro. Seria eu cruel ou indecisa?

 

Tem uma mulher, uma moça que me irrita particularmente mais, sempre chega 12h25, 12h30 deve estar em hora de almoço fica mais de 20 minutos e nunca leva nada, quer dizer às vezes leva, por isso eu a tolero. Me oferecer para ajudar é inútil e como tenho sempre mais gente para seguir, desisti dela. Nas vezes em que finalmente compra um livro, ela sai da loja dando pulinhos. Depois eu falo que são esquisitos e vocês me dizem que eu sou ruim. Essa moça dos pulinhos me lembra uma colega de escola que eu tive, pra quem eu emprestei Meu pé de laranja lima só porque minha mãe me obrigou. Uma tonta, eu menti que ia emprestar o livro e ela acreditou, veio até em casa. Por que a loirinha lindinha bonequinha enjoadinha achou que eu iria emprestar para ela?  Da primeira vez que eu disse que não tinham me devolvido ainda o livro, eu já achei que não viria mais. Mas não é que ela veio!!!! E veio de novo e de novo, cada vez que eu falava “Venha, amanhã”, que tonta! E ela ainda ia embora dando pulinhos, feliz com o quê?

 

Justa, eu toco todos os que olho. Desvendando o que há por trás de capas. Folheio um que descansa no mostruário.  Acabo com o sossego de outro retirando-o da prateleira. O amor pelo mundo me espera em cada página, e são tantas! É um êxtase, eu nunca sei qual escolher…

 

Pensando bem, acho que ela nunca devolveu esse livro. Minha mãe e sua eterna caridade, fico feliz que eu tenha puxado meu pai que sempre foi muito mais vivido, mais prático e por isso fui escolhida para tocar o negócios da família. Livraria é cada vez mais um ramo difícil, tedioso e pouco lucrativo, ainda mais de uns tempos pra cá, se essa moda de livro digital pegar. Minha sorte é que os esquisitos preferem os exemplares em papel. Já peguei um ou outro cheirando livro, cês acreditam?

 

Por vezes sou arrebatada por uma paixão violenta e me pego namorando em lugar errado. Leio capítulos inteiros em pé em parede, pressionada pela impressão desse corpo que descubro e que sobre mim cresce, sôfrega, aos amassos sorvendo páginas avidamente. Pega em flagante por autoridade, só me resta assumir o compromisso e comprar o exemplar.

 

Mas eu preciso agradecer porque foi com ela que comecei a aprender sobre os esquisitos. Eles são assim, ficam felizes com a espera do livro, vocês vejam só. Entendi isso no começo de exercer o comércio, ainda ajudando meu pai. Como também trabalho com livros usados e raros, me especializei na forma de conseguir maior lucro. Pra quem me pergunta pelo livro eu digo que temos mas está no depósito no centro e que como o malote vem de quarta ou de sexta – ou tanto faz porque não existe depósito nem malote – eu peço pra pessoa vir dali dois dias, daí quando ela vem eu falo que aquele estava vendido mas se quer outro exemplar que está em outra cidade, se ela paga o frete, e paga! E nisso peço bom valor de adiantamento e mais uma semana de espera para um livro que sempre esteve na loja. Já aconteceu de um cliente e uma cliente quererem o mesmo título, ela pagou esse frete e tals e nisso veio um cara perguntando e eu dei o preço do livro mais dois “fretes” e homem pagou! Claro, tive que devolver o dinheiro da mulher, pelo “erro de um de nossos funcionários”, tinha que ver a cara de decepção dela como se tivesse morrido a mãe.

 

O flerte é sempre o mesmo. A forma de exercer o desejo não muda se estou em biblioteca ou livraria. Gosto da livraria pelos novos, mas prefiro as bibliotecas pela paz e pela certeza de que todos ali comungam da mesma plenitude da contemplação, que o ritual da compra pouco ou nada permite. E a biblioteca é o lugar feito para namoros e casos que não se pode ou não se quer levar para casa.

 

Um cara aí uma vez me disse que meus preços eram abusivos, que dava para saber qual era o preço médio mesmo de um livro raro. Ele acha que eu acreditei, dá para saber como? Quem é que vai ir ou telefonar pra  cada livraria ou sebo do Recife perguntar se tem o livro e quanto tá? Ninguém faz isso. E com o livro na mão os esquisitos ficam extasiados querem na hora então pagam.

 

Mas se levo pra casa, faço café por sua presença. Alterno degustar um bocadinho da xícara com de suas páginas. Prefiro a rede e leio algumas palavras. Sigo por poucos parágrafos, paro, saboreio.  Ele pousa  escancarado sobre meu colo, em espera tranquila. E é sempre o mesmo prazer puro, desde aquela vez quando pressionei sobre os peitos o volume grosso que pertencia a outra, mas que foi meu em muitos balanços.

 

Aliás, acho que já está na hora de entregar o livro que o Josué encomendou e não aumentar mais o valor, faz mais de dez dias que veio aqui da última vez, isso é estranho. Josué é cliente regular, e pra buscar encomendas sempre veio na data.  Dessa vez vou deixar o produto no último valor que falei, tem que saber a hora de parar de esticar a corda senão arrebenta.

 

Essa alegria sempre em êxtase, esse tipo de amor, é sempre bem pouco compreendido e, por isso, clandestino.  Mas já acostumei a ser feliz às escondidas…

DESTINO

 

Andar.
Liberdade.
Entrar.
Liberdade.
Descer.
Liberdade.
Abriu.
Liberdade.
Sentar.
Liberdade.
Voz fanhosa. Fé?
Muita gente.
Apertar.
Continua.
Cochilar.
Carandiru.
Levantar.
Carandiru.
Abriu.
Carandiru
Não sair.
Carandiru.
Tocou.
Carandiru.
“Você está atrasado…”
Sinal sonoro.
Carandiru.
“Ah você está no metrô? Tá chegando então…”
Fechou.
Carandiru.
Santana.
Jardim São Paulo.
Parada Inglesa.
Tucuruvi.
Parada Inglesa.
Jardim São Paulo.
Santana.
Carandiru.
Vibrou.
Não atender.
Portuguesa.
Armênia.
Tiradentes.
Vibrou.
Desligar.
Luz.
São Bento.
Sé ( a não fé…)
Liberdade. (liberdade?)
Cochilar.


Paraíso?


Santa Cruz. ( mais provável…)





















Tiradentes Armênia Portuguesa Carandiru Santana Jardim São Paulo Parada Inglesa Tucuruvi Parada Inglesa Jardim São Paulo Santana Carandiru Portuguesa – Tietê (era melhor quando era só Tietê) Armênia Tiradentes Luz São Bento ( iluminação é algo que só os santos têm…) Sé Liberdade São Joaquim Vergueiro Paraíso Ana Rosa Vila Mariana (por onde anda a Mariana?) Santa Cruz Praça da Árvore Saúde São Judas Conceição Jabaquara
Jabaquara.
ConceiçãoSãoJudasSaúdePraçadaÁrvoreSantaCruzVilaMarianaAnaRosaParaísoVergueiroSãoJoaquimLiberdadeSéSãoBentoLuzTiradentesArmêniaPortuguesaTietêCarandiruSantanaJardimSãoPauloParadaInglesaTucuruviparadainglesajardimsãopaulosantanacarandiruportuguesatietêarmêniatiradentesluzsãobentoséliberdadesãojoaquimvergueiroparaísoanarosavilamarianasanta cruzpraçadarvoresaúdesãosjudasconceiçãojabaquaraconceiçãosãojudassaúdepraçadarvoresantacruzvilamarianaanarosaparaísovergueirosãojoaquimliberdadesésãobentoluztiradentesarmêniaportuguesatietêcarandirusantanajardimsãopauloparadainglesatucuruviparadainglesajardimsãopaulosantanacarandiruportuguesatietêarmêniatiradentesluzsãobentoséliberdadesãojoaquimvergueiroparaísoanarosavilamarianasantacruzpraçadarvoresaúdesãosjudasconceiçãojabaquaraconceiçãosãojudasaúdepraçadarvoresantacruzvilamariananarosaparaísovergueirosãojoaquimliberdadesésãobentoluztiradentesarmêniaportuguesatietêcarandirusantanajardimsãopauloparadainglesatucuruviparadainglesajardimsãopaulosantanacarandiruportuguesatietêarmêniatiradentesluzsãobentoséliberdadesãojoaquimvergueiroparaísoanarosavilamarianasantacruzpraçadarvoresaúdesãosjudasconceiçãojabaquara
“este trem não prestará serviço” “atenção: este trem será recolhido” “este trem não prestará serviço” “este trem não prestará serviço” “este trem não prestará serviço” “…prestará serviço”” (prestará)
(prestará?)
“Senhor, é preciso sair, este trem não prestará serviço”
(é preciso sair)
(é preciso sair)
Sair.
O trem recolhido. Acolhido?
‘A faixa amarela é a sua segurança’
(Segurança)
(SEGURANÇA)
(Segurança???)
(o vão dos trilhos é canyon da metrópole)
{ }
(é bonito também. é sim, o  limite seduz…)
(limite- limiar , limiar de vida, por quê vida? é preciso sair. sair. sair da vida)
(… o limite seduz…)
{ }
(a faixa amarela é limitação, a limitação não interessa)
{ }
{ }
{ }
{ }
{}
}
Portas que se abrem.
Entrar.
Sentar.
Conceição.
São Judas.
Saúde.
Praça da Árvore.
Santa Cruz.
Vila Mariana.
Ana Rosa.
Paraíso.
Vergueiro.
São Joaquim.
Liberdade.
Levantar.
Liberdade.
Sair.
Liberdade.
Subir.
Liberdade.
Andar.
Liberdade.
Chegar.
Liberdade.
Dormir.
Liberdade.
Sonhar.
liberdade…
Acordar.
realidade.

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De vulcão a rio – 2

 

Respirar é escrever.

Para o soterrado, o asfixiado, o asmático o ar que falta vem do esforço de narinas, traqueia, abdômen, pulmão para puxar o que sobra de ar onde quer que ele esteja  e assim se manter vivo.

Escrever também é ato de sucção que me mantém viva.

Porém se adenoide, se …

– corpo complicado aqui

….

Duas peças em papel, a batalhar encenação.

Duas outras dramaturgias pela metade.

A exata metade.

Outra em ideia.

Dois romances iniciados, um já com 40 páginas..

E até a continuação instagraniana da História da casa

Nada terminado.

Ou quase nada terminado.

Uma de livro de contos já escritos, mas de revisão dele parada.

O tempo?

O de sempre, escasso.

Todos sabemos que o tempo é pouco para arte.

“O tempo do amor e o tempo da escrita são tempos roubados”.

Tempo roubado do que deveríamos estar fazendo.

As obrigações corriqueiras de quando deveria apenas ser quotidiana e tributável

Quando não fútil, quotidiana e tributável

Ou ainda casada, fútil, quotidiana e tributável?

(eu consegui me livrar dos dois 1os adjetivos mas não dos dois últimos)

(não tem nada de cotidiano em escrever…)

Não reclamo mais do tempo, que é briga inútil.

Reclamo do meu corpo.

Do meu corpo que está sucumbindo com o escasso tempo.

Amarrotado pelo peso das horas.

Ao invés de gerar dentro delas.

 

 

Nenhum projeto de texto lindamente planejado se acomoda em um corpo assim.

Corpo epilético.

Corpo – choro -chove

…peças,  romances, contos.. óvulos fecundados que escapam de útero de paredes convulsionantes.

Levados pelas águas transbordantes de um corpo que chora porque não gera

E não gera porque chora.

 

Mas como é necessário escrever.

Como é necessário se alimentar, nem que seja de terra quando não há frutos nem sementes.

Como é necessário sobreviver.

Eu escrevo sobre a não escrita.

E delineio cartas inúteis.

 

Meu corpo é , ao mesmo tempo, terra semeada e soterramento, chuva ansiada e enchente…

Estou a descobrir se morro ou se me gero.

Regenero?

 

#feitiçocontraofogo   #devulcãoario

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Na posta-restante – 2a

Quarta 4 de dezembro de 2019

Olá,

Como está?

Sim, sou eu de novo. Eu continuo consciente de que de como é ingênuo e bobo esta ação de lhe escrever. Mas talvez falte ingenuidade no mundo. Se continuarmos matando crianças e jovens, com certeza.

Ando oscilando entre refrear e liberar impulsos. A repressão é meu default, mas hoje os impulsos ganharam.

Reli a outra carta e vi que eu não expliquei porque você é o único artista vivo com o qual eu tenho necessidade de conversar.

Claro que eu gostaria de conversar com muita gente famosa, mas é uma curiosidade, uma vontade, um fetiche muitas vezes.

A questão é algo tão delicado quanto verdadeiro. Tenho medo de magoar pessoas queridas, já que esse texto também está no rótulo de mais uma garrafa à deriva nesse enorme oceano que é a internet. E decidi deixar pública uma carta particular na esperança de que alguém me entenda. Afinal, ambos sabemos que resposta sua eu não vou obter.

Sobre aquele professor, eu já tinha tido mostras anteriores de que não deveria esperar conexão dali, esperança vã. Em outra disciplina, o mestre e doutor em Fernando Pessoa nos brindava com análises maravilhosas e textos antes inéditos a mim. Deliciada e feliz compartilhei em alto e bom som para todos os presentes em sala que eu me sentia extremamente identificada com Álvaro de Campos (Pessoa, o segundo entre os mortos a quem perguntaria tanto!).

O professor riu.

O professor gargalhou.

O professor me disse “Se você se sente identificada com Álvaro de Campos fica longe de mim, hein! Quero distância!”

Até ali eu tinha certeza de que todas as pessoas já tinham se identificado com pelo menos um poema de Álvaro de Campos, e daí que justamente alguém que destrinchou todas as faces de Fernando Pessoa não.

Será que é por isso? Afinal, para analisar é preciso cortar por partes para melhor precisão de estudo. Separar as partes é matar o todo. Será por isso? Não sei. Não tive uma explicação só o deboche mesmo.

Recentemente comentei sobre esse episódio para um grupo de poetas que comecei a frequentar. Acharam um absurdo o comentário do professor e me senti acolhida.

Mas mesmo entre essas pessoas queridas e entre outras pessoas queridas eu sinto algo que falta.

E, com eles, por isso, me sinto em falta.

Devo ser eu a incapaz de se sentir realmente conectada.

“Não sei sentir, não sei ser humano,

Não sei conviver de dentro da alma triste, com os homens,

Meus irmãos na terra.”

E vou vivendo, em conversas, ações e expectativas quase…

Eu quase, quase humana.

Lendo e assistindo coisas, algumas que não gosto ou gosto pouco e tudo bem. Algumas que gosto muito, muito mesmo mas não da mesma forma que outras pessoas gostam, pois pra mim há muitas lacunas entre a ficção e o que eu sinto.

Quantas e quantas e quantas vezes nem a ficção me traduz.

É por isso que eu preciso aprender de verdade a escrever, para criar um mundo para mim.

Mas, enquanto isso…

A prosa de Clarice me traduz.

A poesia de Pessoa me traduz.

As obras que você assina me traduzem.

Mesmo quando eu “brigo” um pouco com a trama…

Não tem quase entre o que se concretiza e o que eu sinto nas obras que você assina.

E você está vivo.

Feitiço contra o fogo – 3

Não

Não desejo marido de ninguém

Não mesmo

 

Deveria

 

já que

até que…

me projeto esposa

 

não há registro de nenhum gênero de homem conhecido

as reflexões e o gosto

possível e passível

de serem por mim espelhadas

ou (menos ainda)

os que a mim espelham

 

outro gênero como eu não existe no outro gênero

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Feitiço contra o fogo – 2

De muito usada

a faca já não corta

e

de muito esgarçada

a corda já não prende.

 

Nos livremos então

das mais grossas prisões

(as presentes e as que se aproximam)

fiapo por fiapo.

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Feitiço contra o fogo – 1

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De vulcão a rio – 1

Em cima, terra, terra, terra, terra, terra, terra, só terra. De um lado terra, terra, terra, terra, terra, terra, terra. Do outro rocha.Embaixo o buraco.A equipe de resgate não existe.Em cima, terra, terra, terra, terra, terra, terra, só terra. De um lado terra, terra, terra, terra, terra, terra, terra. Do outro rocha. Embaixo o buraco.Cavar, cavar, cavar, cavar, cavar, cavar, cavar, cavar, cavar, cavar. Eu paro para descansar, as unhas sangrando.E em cima ainda tem muita, muita, muita, muita, muita, muita, muita terra.Só terra em cima seria bom. Eu sei que só terra em cima seria bom. Essa rocha, eu precisei desviar.Necessito do que é reto e precisei fazer curvas.Eu sei que desviar da rocha foi uma conquista.Eu me lembro de quando meus dedos esperavam grãos mesmo que compactos e   encontraram solidez, solidez, solidez, solidez bem em cima da minha cabeça.Eu me lembro da minha raiva e do meu choro. Da inércia de 3 dias, sono não descanso, desistência.Eu me lembro do exato momento que decidi tirar as camadas de solo dos meus olhos e da minha boca e comecei a apalpar todos os lados.E em cima um palmo à direita era rocha, mais dois palmos era rocha, outro.. e era rocha. Três palmos à esquerda era rocha, mais dois era rocha.Eu não tinha mais para onde me movimentar, meus limites claros. Cavar, cavar para o lado. Que lado? Cadê pesquisa geológica, ultrassom de solo? Cavei a esquerda porque o terreno era menos indócil. Não há como saber se foi péssima decisão a longo prazo.Cavei, cavei, cavei, cavei para à esquerda como minhoca barata tonta.Esforço de movimento que ainda não é saída. Eu sei que a rocha ao lado agora é uma conquista. Mas não se dá parabéns ao apenas um pouco menos soterrado.Não se diz que está tudo bem a quem tem as unhas sangrando.Não se comemora o quase de quem ainda não vive. Não me lembro como cheguei aqui. A equipe de resgate não existe. Então são duas as possibilidades. Eu sou cadáver adiado. Ou sou semente. Quero ser semente. Mas para me tornar flor eu preciso de coragem para romper a terra. Para ter coragem eu preciso de força. Para ter força eu preciso de ar. Aqui. Agora. Asfixiada.Para respirar plenamente eu preciso sair da terra. Mas para sair da terra eu preciso de força. Para ter força eu preciso de ar. É raro o ar por aqui. Eu preciso escapar do subsolo para respirar. Mas sem ar eu não escapo do subsolo. ….Serei cadáver?

Na posta-restante – 1a

fósforos apagados

 

Quarta 18 de setembro de 2019

Olá, como você está?

Pra começar, eu tenho consciência de como é ingênuo e bobo esta ação de lhe escrever. Sim, foi um impulso. Mas a partir do momento em que eu digito um texto para mais rapidamente organizá-lo, reescrevo à caneta em papel vergé de cor cuidada ao escolhida, e envelope selado recebe o resultado bem acabado, o impulso transformou-se em planejamento e processo.

Se os comentários de redes sociais podem ser desculpados devido ansiedade em ato reflexo facilitada pela grande rede que imprime pixels, em tempo real, em telas compartilhadas por todos, o meu meio de comunicação escolhido não me dá a menor chance: eu tenho plena consciência de como é ingênuo, bobo e ridículo, escrever, envelopar, selar, ir ao correio ou seja, enviar uma comunicação a alguém que não conheço, alguém do time dos famosos.

Mas é exatamente o que eu estou fazendo, então, você aí do time das pessoas realizadas artisticamente receba este “alô” aqui vindo da geral dos irrealizados: essa enorme arquibancada das tentativas frustradas. Como é aí do outro lado?

Exatos dois anos depois da 1ª tentativa de contato (aliás, sabe aquele trecho em que eu disse que não era necessário te encontrar pessoalmente? Eu menti!), eu nem sei direito porque estou escrevendo agora, qual seria o disparador.

Acho que é porque não há disparador, há uma constante.

Eu ainda sou…melhor, ainda estou.

Eu ainda estou no chão olhando os mortos nas prateleiras e chorando. Eu te escrevo porque cansei do diálogo como os mortos e preciso interagir com os vivos. Cheguei nesse chão quando fugi do burocrático certa noite. Precisava sair dali, urgentemente e cheguei até as várias frias e altas prateleiras.

O “dali” era um aula de literatura portuguesa em certo curso de graduação. Não era uma aula entediante, muito pelo contrário, que o tédio tem a vantagem de nunca enganar ninguém. Já o estímulo pode frustrar, como faísca que quase, apenas quase deu o fogo que nos traria o calor. Aquela aula foi uma sequência de fósforos inutilizados.

E a faísca foi um trecho de autor que não me lembro usado como epígrafe em uma aula de Sophia de Mello Breyner Andresen.

Não conhecia Sophia.

Me identifiquei dos ossos à aura com Arte poética II apresentado a mim, displicentemente, junto a xerox de outros poemas.

Expectadora na expectativa, por mais de 40 minutos esperei pelo debate da epígrafe e seu contexto, o que não se deu, e pela leitura da Arte Poética, que não aconteceu.

Nem aconteceria, eu perguntei. Não estava programado.

Eu PRECISAVA conversar sobre a arte de Sophia na voz de Sophia, ansiavam os meus poros por poética. Eu precisava saber se professor e colegas sentiam o que eu sentia. Eu necessitava sentir junto.

O que se deu foi uma aula puramente técnica sobre todos os outros poemas de Breyner Andresen da coletânea. E de uma forma a capturar a geleia viva e petrificá-la pelas paredes como textura a ser apenas admirada (Ah, Clarice, a primeira entre os mortos a quem perguntaria tanto!).

Mas parte da geleia viva deve ter endurecido dentro de mim pois eu sufocava. Saí da cadeira, da sala, do corredor, do prédio. Vi outro prédio, fui até ele, a biblioteca. Então procurei o livro do qual havia saído o trecho da epígrafe, e é muito estranho como o encontrei tão rapidamente. Fiquei saciada com o que o texto integral trazia.

É muito estranho que um texto de escritor que para mim avançou pouco na minha escala pois foi de “desconhecido” a “não me lembro” (Sophia não, Sophia carreguei comigo) é muito estranho que esse escrito desse senhor tenha me trazido mais conexão humana que a convivência em aula com colegas e aquele professor. Sim, eu me senti saciada, mas não feliz. Sozinha no chão entre as tão imponentes prateleiras, me dei conta que o diálogo que me preenchia era sempre com os mortos.  Chorei. Eu em cinzas no cimento queimado.

Mas a pontada aguda da minha solidão não incomodou o mundo, saí da muito e tão bem frequentada Florestan Fernandes antes que algum funcionário precisasse me avisar do fim do expediente. Voltei à aula de rosto enxuto em tempo de minha saída estar dentro da faixa da ausência considerada aceitável.

É muito peculiar, mas é fato o que te digo agora. Apesar de eu ser mais voltada para o conto e o romance (e claro, as crônicas), não há ninguém que se dedique a esses gêneros que eu tenha vontade de encontrar pessoalmente para um longo papo, ou melhor, vários. É justo você, ruim de prosa, como você mesmo admite em entrevistas…é você a única pessoa viva  de trabalho artístico amplamente divulgado com a qual eu tenho necessidade de conversar.

Olá, único artista vivo como o qual eu tenho necessidade de conversar, como vai?

Por aqui, não vou muito bem não, sou vulcão de erupção eternamente adiada sob forte pressão interna e externa. Ando precisando fazer uma loucura.

A expectativa de uma conversa com você é a minha loucura.

Como vulcão de impulsos planejados, não é ainda granito, mas não mais magma incandescente, essa carta.